Quinta, 23 Julho 2020 22:14

A boquinha e a corrupção vestem farda

Superfaturamento, oficiais condenados por fraudes em licitação, nepotismo e privilégios derrubam o mito de que não há corrupção entre militares
Superfaturamento no 1º Batalhão de Infantaria de Selva, no Amazonas, resulta na condenação de militares, inclusive oficiais do alto escalão 1º Batalhão de Infantaria de Selva Aeromóvel era um dos locais onde esquemas ocorriam — Fot Severiano Legenda: Superfaturamento no 1º Batalhão de Infantaria de Selva, no Amazonas, resulta na condenação de militares, inclusive oficiais do alto escalão 1º Batalhão de Infantaria de Selva Aeromóvel era um dos locais onde esquemas ocorriam — Fot Severiano Legenda: Adneison Severiano

Carlos Vasconcellos

Imprensa SeebRio

 

Uma das principais bandeiras dos eleitores que levaram o capitão da reserva Jair Bolsonaro é ou era o combate à corrupção. Parte destes eleitores é formada por verdadeiras “viúvas” da ditadura militar porque acreditam no mito de que quem veste farda está imune à prática de corrupção. Fatos que envolvem o governo e membros das Forças Armadas derrubam esta mitificação.

Propina no Exército

A Justiça Militar acaba de condenar 26 envolvidos na Operação Saúva, iniciada em 2006 pela Polícia Federal, em Manaus, para investigar um esquema de superfaturamento de compras de gêneros alimentícios nas licitações do Exército Brasileiro. Na época, 56 pessoas foram acusadas pelo Ministério Público Federal, inclusive militares, entre eles, oficiais do alto escalão.

Coronéis citados na decisão judicial foram condenados a até 16 anos de prisão por crime de peculato, com pena prevista no Código Penal Militar.

Na sentença, o juiz federal substituto da Justiça Militar Alexandre Quintas, no dia 17 de Julho, condenou 26 pessoas, sendo 19 delas militares, entre eles, dois coronéis, um tenente-coronel, um major, um tenente, além de cinco capitães, um subtenente e oito militares de patentes inferiores e sete empresários.

Dez oficiais chegaram a receber propinas que somaram mais de R$ 620 mil, entre 2004 e 2005, conforme a sentença judicial. Desse total, um tenente-coronel recebeu sozinho, mais de R$ 220 mil em propinas. Segundo depoimentos, do valor total de produtos negociados, 2,5% eram de propina.

Segundo matéria publicada no G1, um coronel também condenado, teve "relevância no esquema criminoso", já que, "por meio de ordens suas eram liberados mais recursos para a aquisição de suprimentos" e "sua conduta foi determinante para a continuidade e sucesso do grupo criminoso instalado", pois sem a liberação de verbas  pela Divisão de Suprimentos, o esquema não teria êxito.

A decisão revela que as ordens do oficial “permitiam a retroalimentação do sistema criminoso, beneficiando todos os envolvidos na cadeia delitiva, contribuindo de forma essencial para a diminuição dolosa do patrimônio público. Como recompensa, recebia propina de empresários envolvidos no esquema fraudulento. Dessa forma, praticou delitos de peculato, em continuidade delitiva".

Contratação de prostitutas

O esquema de corrupção dos militares era tão sofisticado que, na relação dos membros da caserna com empresários tinha até a contratação de prostitutas para promover festa em um motel de Manaus para capitães do Exército.

A operação da PF desmantelou a quadrilha especializada em superfaturar propostas de compras de gêneros alimentícios nas licitações do Exército Brasileiro, do governo do Estado e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), movimentando cerca de R$ 350 milhões nos últimos seis anos.

Empresários do Amazonas, Minas Gerais e São Paulo, servidores públicos municipais, estaduais e federais, além de militares do Exército Brasileiro, foram condenados por formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, tráfico de influência, fraude em licitações e falsidade ideológica.

A decisão cabe recurso na segunda e última instância do Superior Tribunal Militar em Brasília.

Cargos Comissionados

Nepotismo e privilégios para familiares também acontecem no atual governo federal, que dobrou o número de militares em cargos civis comissionados: 6.157 militares da ativa e da reserva ocupam estas funções, sempre muito bem remuneradas. Nem na ditadura militar houve tamanho aparelhamento do Estado por membros da caserna.

O filho do vice-presidente

Certamente não foi uma avaliação baseada na tão decantada “meritocracia” que levou Antonio Hamilton Rossell Mourão, filho do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, a ser indicado gerente executivo de marketing e comunicação do Banco do Brasil pelo presidente da instituição, Rubens Novaes, no primeiro ano de governo. Foram duas promoções em menos de seis meses. Na primeira, galgando ao cargo de assessor especial do BB, o filho do general recebeu uma remuneração entre R$12 e R$14 mil e agora seu salário chega a mais de R$36 mil.

Mas se arrumar um cargo na esfera federal der muita bandeira para críticas da sociedade, a solução encontrada pode ser arrumar um cargo comissionado num governo municipal de um aliado político. É o caso da filha do ministro da Saúde interino Eduardo Pazzuello, que ganhou cargo de confiança na Rio Saúde, empresa pública da Prefeitura do Rio. Stephanie Pazuello foi designada para ser supervisora da Diretoria de Gestão de Pessoas.

Privilégios da caserna

Os privilégios para militares no atual governo saltam aos olhos da sociedade civil. Na reforma da Previdência, os trabalhadores foram prejudicados, com a redução média dos benefícios em até 40% e as pensões, cujos valores que caíram pela metade, além de ter de trabalhar mais para poder se aposentar, com idade mínima de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres. Para receber o valor integral, os brasileiros terão de contribuir por 40 anos, um feito quase impossível para um país recordista em rotatividade e com alto índice de desemprego. Sem falar nas pessoas que estão no mercado informal, como entregadores de aplicativos, sem direito a FGTS e a Seguridade Social.

Já para os militares, a “reforma” manteve o salário integral, elevando o tempo de contribuição que ainda privilegia os militares, que passam a se aposentar com 52 anos de idade. Em troca desta ínfima elevação do tempo de contribuição, o alto escalão das Forças Armadas exigiu aumento dos salários, que chegam a até 70% para os generais.

Como se não bastasse a benesse previdenciária, o governo Jair Bolsonaro pretende agora criar duas categorias de cargos e gratificações no Executivo para ocupação exclusiva por militares, com remunerações maiores que os valores atuais. Oficiais para exercer cargo de confiança na administração podem passar a ganhar até R$ 6.991,73, mais de seis vezes o salário mínimo (R$ 1.045), de acordo com minuta de Medida Provisória, fora o soldo que recebem da carreira militar. Os praças, militares de patente mais baixa, que têm reclamado do tratamento mais favorável dado pelo governo aos oficiais, também poderão receber reajustes.

A corrupção na ditadura

Outro mito é o de que nos tempos da ditadura militar não havia corrupção. O que não tinha é liberdade de imprensa e de expressão para denunciar. O embaixador José Jobim, que havia anunciado que escreveria um livro sobre a corrupção na Hidrelétrica de Itaipu foi encontrado morto com uma corda no pescoço. O regime tratou de correr para dar a versão que teria sido “suicídio”.

O primeiro grande empreendimento faraônico dos militares, a Ponte Rio-Niterói demorou cinco anos para ser entregue e passou por dois consórcios diferentes. O general Costa e Silva licitou a Construtora Ferraz Cavalcanti, a Construtora Brasileira de Estradas, a Empresa de Melhoramentos e Construções S.A. e a Servix Engenharia S.A, que entregariam a obra por 238 milhões de cruzeiros em 1971. O ministro dos Transportes, Mário Andreazza adiou a inauguração e entregou a obra para a Camargo Corrêa, Mendes Júnior e Construtores Rabelo.

A hidrelétrica de Tucuruí, prevista para custar US$ 2,5 bilhões, acabou custando US$ 10 bilhões de dólares.

Conhecida por ser a estrada que liga o nada ao lugar nenhum, a Transamazônica foi uma obra faraônica bilionária e inconclusa por parte dos militares, durante o governo Médici (1969 - 1974). No fim, a Transamazônica terminou 687 km antes do que previa o projeto final, no município de Lábrea, e, claro, sem asfalto. Nem por isso, deixou de custar a bagatela de US$ 1,5 Bi.

Em 2014, o coronel reformado Elimá Pinheiro relatou à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo que os militares receberam financiamento através de caixa dois de empresas. No caso relatado, Raphael de Souza, presidente da Federação das indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), teria pago o equivalente a, nos dias de hoje, R$ 9,5 milhões ao general Amaury Kruel, que comandava o 2º Exército em São Paulo. 

Os fatos derrubam o mito. Sim, a boquinha e a corrupção vestem farda, como pode ocorrer em qualquer setor da sociedade.

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