Segunda, 09 Outubro 2017 00:00

Privatizações e senso comum: é preciso qualificar o debate

Fernando Amorim 1

O ideário neoliberal tem como pressuposto que o Estado é um empecilho ao desenvolvimento pleno do mercado. Desde os anos oitenta o mundo vem sistematicamente revisitando essas ideias, com altos e baixos do ponto de vista do convencimento dos 99%. Por aqui não é muito diferente, e ainda que na última década e meia o poder das urnas tenha rechaçado essa concepção simplista de mundo, não adiantou. Eles deram um jeito de impor suas crenças. Em termos práticos, argumenta-se um teórico esgotamento do Estado nacional-desenvolvimentista, uma abjeta “eficiência privada” e encontra na questão fiscal o álibi para a imposição da solução de sempre: privatizações!!
O Programa de Parcerias de Investimento (PPI), lançado pelo Governo Federal ainda na interinidade é uma clara demonstração da captura do Estado pelos interesses privados (nacionais e internacionais). O amplo pacote de privatizações em setores estratégicos (petróleo e setor elétrico) e em serviços essenciais a vida (água e saneamento) vem ganhando materialização numa velocidade impressionante, sem discussão aprofundada e nem o crivo da população.
Longe de uma mera demonização do mercado, é imprescindível que se discuta a importância de algumas estatais na própria sociedade capitalista, se sobrepondo a alegada baixa produtividade ou a índices de corrupção. No longo prazo tais empresas são essenciais para um crescimento sustentável, como a própria estrutura dos países desenvolvidos nos mostra. Muitos bens públicos como recursos naturais, infraestrutura e mesmo na dinâmica do financiamento (bancos e fundos de desenvolvimento) possuem lógica que foge da dinâmica dos lucros curto-prazista prevalecentes no mercado privado. Em economias modernas, os investimentos de longo prazo não ficam restritos apenas aos elementos basilares da economia tendo na capacidade de planejamento do Estado um fator central. Ademais, muitas estatais possibilitam estabilizar a economia e diminuir os impactos adjacentes às crises cíclicas do sistema.
Do ponto de vista meramente fiscal, por exemplo, há também argumentos suficientes para iniciar a discussão. Primeiramente, basta verificar que na década de 1990, ao contrário da expectativa do governo, as desestatizações mostraram-se instrumentos incapazes de solver a crise fiscal. A partir de 1995, a despeito da estabilização da moeda, a intensificação dos processos de privatização não reduziu o endividamento público, pelo contrário, entre 1995 e 2003, a dívida líquida do setor público saiu de 27,98% do PIB para 52,36% - tendo como agravante os baixos valores de alienação das empresas.
Com o fortalecimento e a reorganização das empresas estatais ainda não privatizadas no período 2003-2014, é inegável a contribuição efetiva para o incremento no volume de investimentos. Neste período, o lucro líquido de todas as estatais cresceu, em média, 6,4% por ano, segundo dados do Tesouro Nacional. Colaboraram também para o aumento na arrecadação de tributos e encargos fiscais das cadeias produtivas associadas a essas estatais contribuindo para o equilíbrio fiscal e situação macroeconômica do Brasil. Soma-se a isso, o incremento da rentabilidade, do patrimônio líquido e nível de emprego dessas empresas. Por fim, pode-se ressaltar o papel fundamental dos bancos estatais na expansão do crédito e em nichos onde o mercado não tem interesse.
Na discussão sobre eficiência, partindo de pesquisa e desenvolvimento à indústria de transformação, passando por transporte, energia, financeiras e de comunicação, estas empresas somavam cerca de R$ 500 bilhões em patrimônio em 2016 . Os investimentos chegaram a R$ 56,5 bilhões, sendo que 97% destes foram realizados por Petrobrás (85%), o grupo Eletrobrás (7%) e o setor financeiro bancário (4%). Quando comparamos com o total de dividendos pagos no país, somente as estatais federais representam cerca de 35% do total. São números nada desprezíveis e que são propositalmente “esquecidos” no debate atual.
Em suma, a decisão do Estado deve obedecer ao interesse coletivo e uma empresa ou agência estatal, embora deva sempre perseguir a maior eficiência possível (e não há razão intrínseca alguma para não fazê-lo), não deve pautar-se apenas pelo critério dos maiores retornos financeiros. Determinada empresa sob controle estatal pode atuar completamente alinhada com os interesses estratégicos nacionais provendo determinado bem a preços competitivos ao conjunto dos agentes econômicos. Há exemplos de governos que estabelecem contratos de gestão com suas empresas estatais em que se definem metas rigorosas a serem atingidas e em que há controle social estrito para evitar a malversação dos recursos. É possível pensar uma forma de governança corporativa que diminua acentuadamente os problemas relacionados à corrupção e à apropriação indevida por interesses privados. O que não se pode é espoliar bens da coletividade sem qualquer discussão técnica e política mais qualificada.

1 Economista, Mestre em Economia Política Internacional e Técnico do Dieese/SEEB RJ.
2 GOBBETTI, 2008.
3 Segundo dados da Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (SEST).

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